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« Essa tal liberdade » (E a angústia de um Domingo qualquer). Uma história baseada* em fatos reais

A idéia do presente texto veio de forma bem banal. Não menos importante, ele pode ser tranquilamente classificado como parte do meu ócio criativo (expressão esta que eu adoro).

Mas por quê será que todo o ócio têm mais valor se for criativo ? Que exigência é esta, que nos faz ter a necessidade de valorizar e validar o ócio ? Que sintomas criamos à nós mesmos quando até o ócio precisa ser carregado de produtividade ?

Bom, voltando a idéia do texto : Acordei, em um Domingo desses em que a gente se propõe a não fazer nada, e me deparei com a casa cheia de pêlos da minha gatinha. Na mesma hora eu pensei em começar uma faxina, mas já tinha planejado assistir uma série que havia sido indicada em um dos seminários de psicanálise do qual eu participo.

Na realidade aquela série estava em minha « lista » de programas à assistir depois de vários meses, e depois de ouvir a discussão de colegas e não ter podido contribuir com nada no debate, senti-me como alguém não pertencente ao grupo, como alguém que estava atrasada e por fora. Foi aí que eu me determinei à recuperar o tempo perdido e acabar com a sensação de « eu já poderia ter feito isto antes » que havia me invadido.

A série até que é interessante, mas longe de ser a melhor série que já assisti. Passados 2 capítulos e meio, e dividida entre a minha concentração e em responder as mensagens de whatsapp, eu resolvi almoçar uma salada leve para logo em seguida fazer a faxina na casa que eu não aguentava mais ver suja.

Novamente determinada em minha tarefa autoimposta me coloquei à aspirar, tirar pó, passar pano, limpar privada, limpar vidros e todo o resto que uma faxina exige, ou melhor que eu me exijo quando faço faxina.

Ao finalizar olhei para a casa e ascendi um incenso de canela, meu preferido, que teria como objetivo trazer mais vitalidade e prosperidade para mim e para a casa.

Coisa boa, penso eu, estar com a casa limpa e poder ascender seu incenso preferido. Até pensei em me sentar um pouquinho, mas não queria perder o pique e decidi sair direto para fazer as compras da semana no supermercado.

Uma pena que nem pudê aproveitar o tempo de ver todo o incenso queimar… eu não me dei este tempo de presente.

Peguei minha sacolinha de pano, a lista de compras organizada por setores do supermercado (teria eu ascendente em Virgem ?) e coloquei meu tênis de Domingo, aquele bem velhinho e confortável, porquê a gente tem roupa de Domingo né ?!

Para aproveitar bem o tempo de caminhada até o super eu coloquei pra escutar aquele Podcast do QGFeminista que eu tinha começado a ouvir no dia anterior. Eu até cheguei a pensar que eu poderia apenas ir às compras em silêncio, mas eu já ando com a impressão de não estar assim tão por dentro do feminismo, ou dos assuntos ligados ao feminismo quando encontro algumas outras mulheres que estão sempre tão bem informadas. Eu detesto fazer comparações, mas por vezes às pessoas parecem estar mais informadas que a gente, você não tem essa impressão ?

Foi então que, determinada que sou, segui firme na minha resolução que era quase que natural ou automática : esta não poderia ser uma simples ida ao supermercado, com ela eu iria aprender algo mais. Me informar. Refletir. Ter idéias para mudar e fazer deste um mundo mais justo para nós mulheres.

O podcast me absorveu, quanto aprendizado ali. Eu pensava : como é que estas mulheres conhecem tanto ? Que mulherada forte esta ! Eu tenho muito o que aprender ainda, muito pra evoluir.

Com esta história de podcast e de pensamentos à mil eu nem vi o tempo passar. Mas eu também não vi uma senhorinha que estava gesticulando ao meu lado, tentando me pedir ajuda pra alcançar um produto na prateleira, até ela me cutucar e me pedir gentilmente "désolée de vous déranger, pourriez-vous m’aider ?"

Que susto ! Aquilo foi quase um retorno pra vida real. Algo que num primeiro momento levei pelo lado bom pensando : "Posso ter muito o que evoluir, mas pelo menos eu ajudei uma senhorinha." Uma ajuda pífia, claro que eu sei. Mas pra ela foi importante. Então, se foi importante pra ela, foi pra mim também. Talvez mudar o mundo possa começar por aí, no dia-a-dia e blá, blá, blá.

Eu resolvi desligar o Podcast um pouco contrariada internamente por não ter escutado os 47 minutos de ensinamentos que aquelas mulheres tinham pra me passar (sim, meu superego às vezes pode ser tão cruel). Mas eu tinha um novo propósito, porquê a gente parece que sempre tem que ter um - viver o momento presente. E se alguém me chamasse, como havia feito a senhorinha ? Eu queria estar atenta.

Peguei o rumo de volta para casa. Sem meus fones pude escutar os barulhos da rua, da cidade, das pessoas. Ainda na metade do caminho eu comecei à planejar : agora eu vou chegar em casa, tomar meu banho ouvindo uma música, depois faço meu chimarrão, meu pãozinho de queijo e talvez vá até aquela pracinha bonita aqui perto de casa, pra ver as crianças brincando, rindo e chorando.

Arrumei as compras no armário e geladeira, e corri pro banho. Na entrada do banheiro estava minha gata que me olhou com o que eu entendi ser uma carinha de entediada. (Oi ?! Os gatos não tem sempre a mesma cara ?!). Mesmo assim eu pensei : "Puxa, ela fica tanto tempo sozinha neste apê pequeno, deve estar cheia de energia. Coitada da gata. Se eu escolhi ter um bicho eu tenho que me responsabilizar por ela."

Com a toalha amarrada e um tanto de frio resolvi fazer uns carinhos na bichinha e brincar alguns minutos.

Instantaneamente um outro pensamento me invadiu : "imagina se eu tenho um filho, como é que não vou me culpar ? Se com um gato eu já sou assim…"

Passado o devaneio do pensamento culposo por uma situação que nem vivo, fui em direção ao tão esperado/merecido banho. Até cogitei acabar o Podcast, mas, determinada que sou, lembrei que iria mesmo ouvir uma boa música brasileira. Selecionei uma playlist de bossa-nova. Ainda em frente ao espelho fui invadida por uma angústia depressiva. Culpabilizei a música que era muito lenta. Então eu decidi parar com tudo e ficar em silêncio.

A água do chuveiro esquentou e eu entrei no box em silêncio. Uma angústia sem nome me invadiu novamente. Aquela angústia que dá vontade de chorar sem motivo nenhum. Eu pensava quase que apressada: Preciso fazer algo. Eu preciso fazer algo. Por quê razão eu estou assim ? Não tem razão, não tenho motivos.

A água continuou a correr. Eu lembrei do meu propósito de não gastar mais água em vão. Desliguei o chuveiro para massagear o cabelo tomado pela espuma.

Era espuma misturada às lágrimas, misturadas à angústia, misturadas aos porquês disto tudo. ‘É o signo, só pode ser ele. Os geminianos são assim, uma hora tá tudo bem e do nada, pronto, tá tudo ruim sem mesmo estar’.

Tirei o shampoo e de súbito o silêncio tornou-se revelador : era ele que estava me angustiando. Eu me dei conta que eu não consigo mais lidar com o silêncio. Nós não conseguimos mais lidar com o nosso próprio silêncio. Existe hoje em dia uma necessidade quase que vital de sempre produzir, ler, escutar, limpar, produzir mais um pouco, conhecer, descobrir, estudar, fazer listas, produzir, produzir de novo e mais um pouco.

Eu me dei conta que o silêncio do ócio, sem ser criativo, me conectou com um vazio existencial que é próprio de todo o ser humano, mas que tentamos negar, abafar, afastar, produzindo assim um outro mal estar : de que seremos felizes quanto mais produzirmos. De que felicidade é sinônimo de fazer.

Me dei conta que a lógica capitalista invade nossas vidas o tempo todo ; ela está lá mesmo quando pensamos estar saindo dela ; mesmo quando nem pensamos nela. Um Domingo banal precisa ser preenchido com afazeres, listas, às vezes maquiadas de busca por conhecimento. A gente não aguenta mais não fazer nada de verdade. O silêncio se transformou em algo aniquilador, reforçado pela lógica das teorias positivistas e pela onda de gratidão.

É claro que eu não estou aqui desqualificando o estudo, a leitura, as tarefas e o trabalho. É claro que eu sei que precisamos de organização, ação, trabalho, leitura e podcasts.

Na realidade eu estou aqui fazendo um convite para uma reflexão : Estamos angustiados ou produzimos nós mesmos esta angústia ?

Afinal de contas, às vezes um Domingo é apenas mais um Domingo. Banal. Silencioso. E não há mal nenhum nisto. Ao contrário, pode fazer um bem danado. Se não fosse este silêncio sem nome, eu não teria tido este insight tão revelador e que vem me guiando de lá pra cá.

Desliguei o chuveiro e ‘desliguei’ as lágrimas alividada. Fiz o chimarrão. Fui à pracinha perto de casa. Liguei a playlist de pagode e como uma ironia da vida a primeira música à tocar foi :

« O que é que eu vou fazer com essa tal liberdade ? »

* História baseada em fatos reais, com passagens da minha vivência, mas com adendos da riqueza de histórias que eu escuto por aí.





Denise GAELZER MAC GINITY Psicóloga Clínica/Psicanalista em Paris Telefone : 06 68 08 12 80 degaelzer@gmail.com

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